entrevistas - valter hugo mãe

 

entrevistado por jorge melícias em outubro de 2003

 

‘Escrevo sempre mais do que sei' (Heiner Muller), assinas por baixo?

tenho dito sempre que vejo a arte como caminho para o desconhecido. toda a arte, e não só a poesia, serve para revelar algo, para trazer ao de cima coisas que nunca vimos ou entendemos, como se estivéssemos a destapar segredos de deus. encaro a escrita, sem dúvida como um processo de me surpreender a mim mesmo, só depois os outros. se a escrita fosse simplesmente o que sei, não me chamaria; importa-me muito mais o que posso vir a saber com o seu exercício. como uma pesquisa, um estudo, um acréscimo. corremos pela arte por algo que nos falta, e o que nos falta é mesmo o que não temos.

 

Quando pensamos ter encontrado uma linha mestra na tua poesia – a cobrição das filhas e útero podem ser vistos como as duas faces de Juno – eis que surge um livro como o resto da minha alegria. Até que ponto estas inflexões poderão baralhar os teus leitores?

podem baralhar tanto quanto a mim. estou muito desperto às inflexões, gosto de me reposicionar, que é reposicionar o sujeito poético e fazer dele uma personagem sempre nova, convicto de coisas outras, para me mostrar esse espaço desconhecido que procuro. vejo as coisas como errantes, coisas que vão e voltam, ou mesmo que se perdem por mil razões. não gostaria de entender que já estou cristalizado numa semântica que me defina para sempre. imagino-me a mudar a cada passo se isso me parecer bem e a capacidade me assistir. não me sinto obrigado perante os leitores, sinto-me agradado quando existem, nunca pressionado para seguir neste ou outro sentido.

 

Quanto ao carácter fragmentário dos teus textos, estás consciente de que a ordem com que o leitor apanha os estilhaços é aleatória. Até que ponto isso se conjuga com a tentativa de impor uma visão do mundo como todo o escritor persegue?

sei que a maioria dos leitores de poesia está habituada a folhear aleatoriamente as páginas e ler, sem mais, o poema que encontrar. num livro meu isso realmente significa algo como ver um filme com um editing aleatório, começar pelo fim, ver o princípio a meio e o meio no fim. poderia resultar num belíssimo Godard, mas acredito que resulte sobretudo em algo mais confuso do que era suposto. se eu pudesse escolher a forma como as pessoas me lêem gostaria, sem dúvida, que corressem o livro pela sua ordem, porque efectivamente o mundo que eu quero impor organiza-se assim, como se fosse esse o caminho a fazer. o que não quer dizer que não conte com a efabulação própria de cada leitor, não tem a ver com isso, tem a ver com uma perspectiva, um enfoque, que é dada num sentido e que me leva a crer que lido de um fôlego o que escrevo se revela muito mais.

 

Eras capaz de ‘voltar ao real', tu que nunca partiste dele?

o real está-me nos pés, a cabeça deixo-a largar. não tem como voltar ou sair, tudo o que existe, ou parece que existe, estabelece um compromisso entre a realidade e a ficção num sentido claro de que todas as coisas são dotadas de um pedaço de cada.